SESSÃO DE LANÇAMENTO DO ROMANCE
“A CASA DAS AURORAS”
COM FERNANDO PINTO DO AMARAL
Introdução de Ana Maria Pereirinha – Editora /Planeta Manuscrito
A Casa da Escrita de Cristina Carvalho
Muito boa tarde, obrigada a todos pela vossa presença, obrigada, uma vez mais, pelo acolhimento dos nossos vizinhos da Fnac Chiado, obrigada muito especialmente ao Fernando Pinto do Amaral, que se dispôs de imediato a apresentar A Casa das Auroras, confessando-se admirador de há muito da obra da autora.
A Cristina Carvalho tem referido em várias ocasiões, em entrevistas a propósito do lançamento deste livro, que a imagem da capa, a bela imagem da capa, foi escolhida por mim, logo depois de ter lido o original que ela teve a generosidade de me pôr – a mim e à Planeta – nas mãos.
É verdade – depois de ter lido esta história de histórias de mulheres e de duas ou três conversas com a autora, a imagem que me havia fascinado há uns anos na Alemanha veio-me à memória com a força de uma convicção – a de que esta pequena pintura do romântico, magnífico e maldito Caspar David Friedrich (1774-1840) era «a» capa, «a» imagem para este livro.
A afirmação desta mulher frente ao sol, de frente para o sol, diz para mim tanto sobre o livro como sobre a autora, que também fui conhecendo melhor à medida que o processo de trabalho ia avançando. E transmite-me sentimentos e ideias que, na verdade, são para mim tão justos de aplicar a uma como à outra, à autora como à obra: clareza, frontalidade, desassombro, vitalidade, ser, força telúrica, mistério, liberdade.
De facto, esta autora, que se apresenta a si própria como «transitório ser humano do sexo feminino, habitante do planeta Terra e, por acaso, escritora» é um dos seres humanos mais estruturalmente livres que já me foi dado conhecer, e, embora concorde com ela quando diz que a obra, qualquer obra, deve falar por si, e que a vida (mais propriamente “a vidinha”) dos escritores não deve aí estar exposta nem contar como ferramenta de leitura ou interpretação dos livros, tenho de admitir que, embora as suas circunstâncias possam ser, na verdade, irrisórias, duas coisas se extraem sobre a autora, quer ela queira, quer não, da leitura deste livro: a inteireza e a liberdade estruturais, por um lado, e, por outro, que embora numa perspectiva cósmica, se assim quisermos chamar-lhe, ela possa ser escritora «por acaso», o impacto dessa espécie de grande lotaria do acaso no ser humano Cristina Carvalho determinou que, nela, ser escritora é uma inevitabilidade tão natural ou tão monstruosa como o sol nascer e pôr-se todos os dias.
A liberdade, tal como a escrita, não são zonas de alegria: dão trabalho, um trabalho necessariamente pessoal e solitário, implicam coragem e determinação, resistência e persistência. Cristina Carvalho é assim: um ser laborioso que produz alegria, boa disposição, e escrita que é uma alegria de ler, que nos embala numa ingenuidade enganadora e nos «caça» irremediavelmente uma vez adentrados nas suas histórias.
E daí nascem as principais razões por que esta Casa das Auroras me interessou enquanto leitora e enquanto editora. Interessou-me
pela ousadia da forma e da estrutura desta história feita de histórias de mulheres,
pela clareza encantatória da escrita e pelo domínio da arte de contar,
pelas personagens retratadas sem qualquer complacência de género, vítimas e carrascos, pela verdade inteira que isso significa(a verdade da mulher livre que Cristina Carvalho é),
pela dureza das questões colocadas nestas histórias e pela ironia permanente que por elas se infiltra, como um «humor cósmico» que só uma mente aberta como a da Cristina poderia espalhar (e espelhar).
Também porque é uma história de fantasmas – esses seres «entre», entre dois mundos, entre a luz e as trevas, entre a razão e a crença – que li como reflexos do nosso próprio estado de fantasmas, de quem anda sempre entre uma coisa e outra, cada vez mais desprovidos de linhas de fronteira que nos protejam e nos contenham do lado do «real». É, pois, uma história nossa, esta, de humanos com os nossos momentos luminosos e tenebrosos, com a nossa violência e a nossa imensa fragilidade, com o bem e o mal intrínsecos que nos dominam.
E este é um território em que Cristina Carvalho se movimenta com a mestria de um navegador muito experimentado, conduzindo-nos, leitores pequenos ou grandes, pela luz e pela sombra da sua livre imaginação: não é por acaso, certamente, que a obra que já está «na calha» para publicar em breve com o seu outro editor, um livro para jovens, se intitulará justamente «Lusco-Fusco».
Voltando à imagem da capa, há um detalhe que eu julgo que a Cristina não conhece e se prende com o título desta pintura: na realidade, ela não tem um título, tem vários. É conhecida como «Mulher ao sol poente» (Frau vor untergehender Sonne), «Pôr-de-sol» (Sonnenuntergang) «Nascer do sol» (ou «Aurora») (Sonnenaufgang) e «Mulher ao Nascer do Sol» (Frau in der Morgensonne). É, pois, uma mulher entre a luz e as trevas, esta, se quisermos entre a vida e a morte – tão fantasma como todos nós, tão fantástica como esta autora, Cristina Carvalho, que tem o seguinte credo:
«Acredito nas nuvens apenas: naquelas que me trazem água, muita água, e que quando se afastam deixam passar o sol.»
E deixam passar a escrita. Obrigada, Cristina.
Chiado, 25 de Maio de 2011
Ana Maria Pereirinha